A história do Quilombo Urbano Maloca, no bairro Getúlio Vargas, se entrelaça com a própria formação da memória negra de Aracaju. Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o território reafirma sua importância histórica, cultural e simbólica, destacando a força de uma comunidade que atravessa gerações e preserva tradições ancestrais.
Reconhecida como quilombo urbano pela Fundação Cultural Palmares em 2007, a Maloca nasceu a partir das primeiras famílias negras que chegaram à capital na década de 1930. Com o passar das décadas, consolidou-se como um espaço de convivência, fé, afetos e resistência, onde saberes são transmitidos entre avós, filhos, netos e bisnetos.
A aposentada Maria Rosa, de 85 anos, é um dos pilares dessa memória viva. Natural de Laranjeiras, chegou à Maloca há cinco décadas, criou seus filhos e hoje acompanha a quarta geração crescer no mesmo território. "Meus filhos se criaram aqui, meus netos, já tenho bisnetos. A Maloca é uma comunidade que todo mundo gosta. Todo mundo que vem aqui gosta daqui. É uma comunidade maravilhosa. Deus mora aqui dentro", contou.
Entre os descendentes diretos do fundador da comunidade está o produtor cultural e administrador Rosivaldo Alves, de 39 anos. Para ele, cada atividade realizada no quilombo carrega a presença dos ancestrais e fortalece o vínculo com a história da Maloca. Ele lembra que a comunidade mantém ações contínuas dedicadas à cultura. "Primeiro não posso esquecer quem veio antes de mim. É muito gratificante saber das minhas contribuições hoje na cultura aracajuana. Venho atuando bastante aqui na volta da cultura. Desenvolvi um projeto chamado Festival de Samba da Maloca. E a gente vem realizando várias atividades culturais também voltadas para o samba. A Maloca é amor, a Maloca é alegria, a Maloca é cultura, a Maloca é o nosso ouro negro do Estado de Sergipe", afirmou.
O cantor, compositor e intérprete Mestre Saci, de 63 anos, filho de dona Maria Rosa, também cresceu dentro da Maloca. Ele relaciona o 20 de Novembro à necessidade de preservação da história e das lutas da comunidade. "Eu cheguei aqui com quatro anos de idade e aqui era tudo diferente. No momento como esse, numa data festiva que está chegando, o dia 20, dia da Consciência Negra, é onde a gente se expressa, onde a gente conta a nossa história de vida, de luta. Para a gente conseguir tornar isso aqui como referência, como primeiro quilombo urbano de Sergipe, a gente teve muita luta, sofremos muito", lembrou. Ele destacou ainda as viagens feitas pela comunidade a Brasília até conquistar o reconhecimento oficial como quilombo urbano.
Para o coordenador da Associação Quilombo Maloca, professor Roberto Amorim, a história do território acompanha o movimento da população negra em Sergipe ao longo do século XX. "A Maloca é um território simbólico não só para Aracaju, mas para o estado de Sergipe. Ela é o segundo quilombo urbano do Brasil e o primeiro de Sergipe. Ela se constituiu a partir de um contexto de 1930, de migrantes vindo da região do Vale Cotinguiba para Aracaju, em virtude de que o clima da época não era favorável. Isso possibilitou a vinda de filhos de ex-escravos, e a questão econômica do Brasil, que em 1930 mudava seu sistema agroexportador para um processo de industrialização. Isso influenciou Sergipe, que dependia da cana e do algodão. A dependência desses produtos minguou o processo de trabalho, o que possibilitou a vinda de negras e negros para a capital", explicou.
Ao relacionar a Maloca ao Novembro Negro, o professor reforça o valor da ancestralidade, das tradições e do letramento racial como pilares de continuidade e resistência. "A ancestralidade é algo que perpassa de avô, pai, filhos, netos e resiste nas nossas tradições: o Caruru de São Cosme e São Damião, a Feijoada de Ogum, as nossas manifestações folclóricas, o samba da Maloca. Isso são tradições passadas desde os primeiros que chegaram. Eu produzi o livro Ilumó: Quilombo Maloca, que foi adquirido pela Secretaria Municipal da Educação e estará nas escolas públicas no ano letivo de 2026. Nesse livro, eu resgato o trabalho cultural, a história e a discriminação que os primeiros quilombolas sofreram. A nova geração precisa compreender aquilo que a filosofia africana diz: nós somos porque outras pessoas estiveram aqui. Esse legado é conservado pela cultura", afirmou.
Presença das políticas públicas no território
A associação desempenha papel fundamental na articulação com os órgãos públicos, fortalecendo o acesso a serviços e garantindo a participação da comunidade nos espaços de decisão. Roberto ressalta que essa presença constante contribui para aproximar a gestão das necessidades reais do quilombo. "A nossa associação é de fundamental importância pela relação social, política e proximidade com a comunidade. Falo da nossa participação nos conselhos, como o Conselho Local de Saúde e o Conselho de Promoção da Igualdade Racial. Mantemos relação com a Prefeitura de Aracaju, Governo do Estado e Governo Federal. Muitas campanhas de vacinação das crianças começam aqui. As reuniões dos conselhos de saúde acontecem na associação. Essa proximidade facilita muito o desempenho social e também a participação dos federados junto conosco", afirmou.
Um dos exemplos desse diálogo é a participação das crianças da Maloca no processo de construção do Plano Municipal da Primeira Infância, aprovado por unanimidade na Câmara Municipal. Para Roberto, essa etapa reforça a importância de ouvir quem vive diariamente o território. "Essas ações são extremamente louváveis, porque fazem parte do próprio escopo do processo democrático. A democracia não se resume apenas ao ato de votar; ela também está no ato de escutar a comunidade, permitindo que ela externe seus anseios e necessidades. E os profissionais que compõem o quadro público possam direcionar suas ações de acordo com essas demandas. Vejo essas escutas como uma afirmação do processo democrático no Brasil. Isso é essencial", pontuou.
A conselheira tutelar Denise Cardoso dos Santos, moradora há 54 anos, descreve a Maloca como parte inseparável de sua trajetória. "A Maloca é tudo pra mim. É onde eu vivenciei momentos bons, momentos felizes e momentos tristes, por ver muita discriminação racial, que até hoje tem aqui na nossa comunidade. Mas mesmo assim a gente anda lutando, a gente vem conquistando muitas coisas boas para a nossa comunidade e para o nosso povo. A experiência da gente, junto com a associação, é que a gente mude essa temática que vem acontecendo aqui dentro da Maloca. Minha comunidade é tudo", afirmou.
A presidente do Conselho Municipal da Igualdade Racial de Aracaju, Maria Elisângela Santos, também celebra o papel simbólico e político da Maloca. "É um espaço de resistência, de grande importância, de relevância. Talvez por ser um espaço preto dentro da nossa capital, não seja um espaço que tenha o protagonismo merecido", observou. Ela destaca avanços recentes, especialmente com a retomada das conferências municipais. "A retomada das conferências foi um marco importante. A da igualdade racial trouxe muitas demandas que devem ser executadas em curto, médio e longo prazo", disse.
Segundo ela, o Conselho mantém relação direta com a associação. "As intervenções que acontecem aqui vêm por meio das associações. Nós temos letramento racial, oficinas, intervenções culturais, propostas encaminhadas à gestão, relatórios técnicos, acolhimento das denúncias de racismo, acompanhamento e monitoramento", concluiu.